21.04.2020
Nonato Guedes
Até 1985 – portanto, há 35 anos – o povo brasileiro homenageava no dia 21 de abril, com direito a feriado, a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, “líder” da Inconfidência Mineira, o mais importante movimento sedicioso que aconteceu no Brasil Colônia durante o século XVIII, executado a mando da Corte portuguesa. De 1985 para cá, o mito do alferes Joaquim foi ofuscado pela imagem expressiva de Tancredo de Almeida Neves, também mineiro, líder político que arquitetou uma das mais difíceis empreitadas da história recente do país – a transição da ditadura militar para a democracia. Tancredo morreu após uma via crucis por hospitais de Brasília e São Paulo, sem ter tomado posse na presidência da República, para a qual fora eleito por via indireta. Sucedeu-o José Sarney, o vice, dissidente do partido que dava sustentação à ditadura e que foi recebido com ingrata surpresa por uma sociedade perplexa, que depositara todas as fichas na Nova República prometida por Tancredo.
A comoção pela morte de Tancredo era tanta que José Sarney, um oligarca do Maranhão que ainda está vivo, relutou, pressuroso, em assumir a presidência da República no vácuo da partida de Tancredo. “Eu tinha medo. Na minha cabeça, estavam milhões de brasileiros olhando-me e apupando-me como o injusto beneficiário”, confirmou, num dos inúmeros depoimentos a historiadores. Conta o brilhante jornalista Elio Gaspari que Ulysses Guimarães foi o primeiro hierarca da nova ordem a dizer a Sarney: “É você”. Além da frustração de milhões de brasileiros, havia fundados receios de movimentos golpistas ensaiados por bolsões militares radicais para impedir a posse de Tancredo – ou de Sarney. Esses balões de ensaio foram neutralizados com perícia pelo próprio Tancredo, de forma antecipada. Só ele, afinal, tinha a chave do mistério para construir a transição.
Mesmo assim, houve um contratempo simbólico, ainda que irrelevante. O general João Batista Figueiredo, último presidente do rodízio imposto a partir de 1964, recusou-se a entregar a faixa presidencial a Sarney, que era o novo presidente, ou mesmo a Aureliano Chaves (que era o vice de Figueiredo). Enquanto se costurava uma solução, o general Ivan de Souza Mendes, novo chefe do SNI, soube de outro problema: “O Aureliano advertiu que se o Figueiredo fizesse qualquer desconsideração com ele, ia meter-lhe a mão na cara”. O quinto general do regime deixou o Planalto pela porta lateral, despercebido. Depois de 21 anos, acabara-se a ditadura – narra, ainda, Elio Gaspari, com elegância e preciosismo invejáveis, acrescentando: “Sarney foi empossado com toda a pompa. Terminara o maior processo de conciliação da história nacional e na cena faltava Tancredo Neves, o sujeito da frase, seu arquiteto e moderador”.
No livro”1985 – O Ano em que o Brasil recomeçou”, Edmundo Barreiros e Pedro Só tratam da associação entre colégio eleitoral (que em janeiro daquele ano deu a vitória a Tancredo Neves contra Paulo Maluf, por via indireta) e o Rock in Rio, megafestival que reuniu cinquenta mil roqueiros de todas as tribos na Cidade do Rock especialmente erguida para o evento. Dizem os autores: “Não foi com Hino Nacional nem com Coração de Estudante, nem Peixe Vivo nem com alguma outra papagaiada nacionalista. No dia 15 de janeiro, na Cidade do Rock, no Rio, as hostes metaleiras saudaram o resultado das eleições no Colégio Eleitoral cantando ao mais baixo estilo arquibancada: “Eu, eu, Maluf se fodeu”. Nenhuma alusão ao vencedor ou a algum aspecto positivo de fé no futuro. Àquela altura do campeonato, ou melhor, do festival, ninguém tinha ideia de que o Brasil estava entrando no mais longo período democrático de sua história”.
Tancredo, dizem Edmundo Barreiros e Pedro Só, estava longe de ser o candidato ideal para os jovens que tinham ido assistir Scorpions e AC/DC. E aqueles jovens também estavam longe de ser o eleitorado dos sonhos do político mineiro. “A minha juventude, a juventude por quem eu tenho apreço e admiração, não é a do Rock in Rio”, havia anunciado ele, alguns dias antes. Logo, Tancredo percebeu que tinha mandado mal e disse que suas declarações foram colocadas fora do contexto. Maluf aproveitou para estabelecer logo: “A minha juventude é a juventude do rock”. Ninguém acreditou, é claro. Em todo caso, tudo era permitido, porque o Brasil, bem ou mal, se reencontrava com a democracia, com o Estado de Direito, que fora surrupiado pelos gorilas da linha dura militar.
Sobre Tiradentes, conforme adverte o escritor Roberto Lopes, pode ser considerado um importante ativista da Inconfidência Mineira, um propagandista, mas nunca o seu líder. “A versão oficial da conjura que se desenvolveu no eixo Rio de Janeiro-Vila Rica entre 1788 e 1789 confirma a perigosa vocação brasileira para a criação de mitos”, pontua Roberto Lopes, fazendo um revisionismo baseado em acurada pesquisa histórica. É possível que sim. Quanto a Tancredo, foi um líder – de carne e osso – da reconstrução democrática brasileira, ainda que, infelizmente, não tenha assumido. Mas a versão do sacrifício, de dar a vida pelo País, apenas romantiza ainda mais a figura do político mineiro atuante no século XX.
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