24.05.2022
Do Centro aos extremos da capital paulista, o cenário se repete: aumentou a quantidade de pessoas que pedem comida, roupa, trabalho. Muitos também são os paulistanos que perderam suas casas após a pandemia de Covid-19 e, sem alternativa, passaram a morar nas ruas.
CORREÇÃO:
Ao publicar essa reportagem, o g1 errou ao informar que o crescimento da
pobreza tinha sido de 50%. A matéria foi alterada às 6h50.
O que vemos no dia a dia
pode ser comprovado por números: mais de 619
mil famílias estão vivendo em situação de extrema pobreza na cidade de São Paulo,
segundo dados da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
obtidos com exclusividade pelo g1.
O
levantamento foi realizado a partir de dados coletados do Cadastro Único
(CadÚnico) do município. Em janeiro de 2021, 473.814 famílias estavam nesta
situação e, neste ano, são 619.869, aumento de 30,82%.
As
subprefeituras que possuem mais famílias na extrema pobreza ficam na Zona Sul
da cidade:
·
M’Boi Mirim: 41.308;
·
Capela do Socorro: 39.230;
·
Cidade Ademar: 38.108.
Já
os que possuem o menor número de famílias em extrema pobreza são:
·
Lapa, na Zona Oeste: 4.996;
·
Vila Mariana, na Zona Sul: 2.964;
·
Pinheiros, na Zona Oeste: 2.024.
Definição de extrema pobreza
O
critério do governo brasileiro para definição de extrema pobreza difere do
utilizado pelo Banco Mundial. Para a instituição, considera-se nesta faixa quem
tem renda diária per capita de US$ 1,90, ou cerca de R$ 274,50 mensais.
Já
o CadÚnico classifica como extrema pobreza aquelas famílias com renda per capita mensal de até R$ 105. O valor é
estabelecido pelo governo federal, por meio de um decreto do presidente da
República. A última atualização das faixas de renda foi realizada em março.
Quem
se enquadrar no conceito definido pelo governo passa, então, a ter direito a
receber benefícios sociais, como o Auxílio
Brasil, que paga a partir de R$ 400 para famílias em extrema pobreza.
Antes
do início da pandemia, em janeiro de 2019, eram 412.337 famílias
nesta situação na capital paulista. No mês de janeiro seguinte, em
2020, subiu para 450.351, um aumento de 9,21%. Em 2019, eram
consideradas famílias em extrema pobreza aquelas com renda per capita mensal de
até R$ 85. Em 2020 e 2021, a renda per capita que atestou tal situação era de
até R$ 89.
Nos
três anos, os bairros de M´Boi Mirim, Capela do Socorro e Cidade Ademar, na
Zona Sul, se mantiveram entre os que registraram os maiores números de famílias
nesta situação, seguidos por São Mateus, na Zona Leste.
Para
Marcelo Neri, diretor da FGV Social, os números do CadÚnico não mostram os
reais dados de extrema pobreza nos municípios, que podem ser ainda maior.
“Tivemos
o processo de migração do Bolsa Família para o Auxílio
Brasil, mas antes disso, vigorava o auxílio emergencial. Nessa
passagem, teve o aumento do valor do benefício em relação ao Bolsa Família, mas
diminuiu o número de beneficiários em relação ao auxílio emergencial, o que
gera flutuações. O cadastro é um medidor de quem está sendo enxergado pela
política, quem está sendo servido ou não”, afirma.
"Existe
a questão de visualização, quantas pessoas realmente estão sendo vistas nesses
números. Tivemos o aumento da população de rua, muitas dessas pessoas não
estão incluídas no Cadastro Único, temos pouco investimento em assistência social
para fazer uma busca de todas as pessoas que estão nessa situação",
completa Neri.
Isso
porque a inscrição no Cadastro Único é realizada somente de forma
presencial. O CadÚnico é um registro que permite ao governo saber
quem são e como vivem as famílias de baixa renda no Brasil. Ele foi criado pelo
governo federal, mas é operacionalizado e atualizado pelas prefeituras de forma
gratuita. Ao se inscrever ou atualizar seus dados, a pessoa pode tentar
participar de vários programas sociais.
Podem
se inscrever famílias com renda mensal por pessoa de até meio salário mínimo ou
que possuem renda acima dessas, mas que estejam vinculadas a algum programa ou
benefício que utilize o cadastro em suas concessões.
O g1 visitou a comunidade de Pinheiral, no Jardim
Ângela, que faz parte da Subprefeitura de M'Boi Mirim, na Zona Sul, uma das
ocupações que recebe doações da organização sem fins lucrativos Sociedade
Santos Mártires, que atua na região.
A
reportagem conversou com moradores da comunidade, que relataram ter deixado de
consumir itens básicos, principalmente a carne, por conta do aumento no preço
de produtos.
"Pessoas
dos mais diversos perfis estão precisando do básico, pessoas que perderam o
emprego e todas as suas fontes de renda estão nos procurando para pedir ajuda
não só para comer, mas em busca do básico para viver", afirma Regina
Paixão, líder comunitária.
"O
problema não é só a fome. Com a alta no preço das coisas, dificultou o acesso
das pessoas no básico. Como você vai ao mercado se não tem dinheiro, hoje o que
dá para fazer com R$ 400? Além de alimentação, pessoas precisam de muita coisa,
sabonete, papel higiênico, itens de higiene básica, o mínimo para garantir
dignidade", completou.
Na
comunidade com cerca de 100 famílias, segundo assistentes sociais que
acompanham o local, quase todos dependem de doações e do Auxílio
Brasil. Eles recebem diariamente marmitas do projeto Cozinha
Solidária, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).
Segundo
Regina Paixão, muitas pessoas começaram a pedir por ajuda até para comprar a
passagem de volta para o estado de origem por conta da crise, para fugir da
fome. "É um movimento de volta que estamos observando, as pessoas que
vieram para o estado de São Paulo justamente em busca de novas
oportunidades estão sem alternativas."
No
ano de 2022, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA),
que mede a inflação oficial do país, acumula alta de 4,29%. De março de 2020, no início da pandemia, até abril deste ano, a
inflação acumulada já está em 19,42%.
'O jeito é pedir sobras'
'O
jeito é viver de sobras, eu peço as sobras nos açougues, gordura também. Pego
as sobras e vou tirando o que dá para aproveitar, vou me virando', afirma
Suzana Nascimento Barbosa, de 29 anos.
Ela
mora com a filha de 10 anos e recebe cerca de R$ 500 por mês para se manter, R$
400 do Auxílio Brasil e cerca de R$ 50 quando consegue
fazer faxina. "Acabo fazendo reciclagem para complementar o valor, tem
vezes que até rende uma coisinha."
"Se
eu falar que dá para passar o mês, vou estar mentindo. Sempre falta alguma
coisa. Café e carne eu deixei de comprar, não tem como. Frutas e legumes sempre
dá para conseguir algo em fim de feira, mas tem mais coisas que a gente
precisa, que são caras: papel higiênico, por exemplo, é uma coisa que é difícil
conseguir doado", afirma.
Além da fome
Segundo
Regina Paixão, conforme a capital foi diminuindo as restrições por conta da
pandemia da Covid-19, também foram caindo as ações sociais na região do M´Boi
Mirim. "Muitas pessoas perderam o emprego na pandemia e ainda não
conseguiram recuperar, essa região ainda é cidade-dormitório, ou seja, os
moradores dormem por aqui, mas trabalham e procuram emprego em outras regiões,
então existe uma série de fatores, uma falta de investimentos por parte da
prefeitura que dificulta ainda mais o desenvolvimento."
Ela
ressalta que a assistência social oferecida do poder público não chega a quem
precisa e mora nas extremidades da cidade. "É complicado, a gente não tem
Metrô aqui ainda, uma luta de anos, uma coisa que com certeza diminuiria os
gastos de uma pessoa que precisa se locomover para procurar emprego. Estamos em
outra realidade agora, nasceu um outro nicho de pobreza no território. O poder
público enxerga o Jardim Ângela só pelo centro do bairro, mas existem bolsões
nas extremidades onde a assistência social não chega, e nós não temos recursos
para atingir todos."
"O
problema não é só a fome, não é só entregar uma cesta realmente básica com o
mínimo que resolve, são diversos fatores que mantêm as pessoas na mesma ",
completou.
Para
Marcelo Neri, além do fato de que nem todas as pessoas que precisam estão sendo
contempladas pelo Auxílio Brasil, o valor é mal distribuído. Ele explica
que o auxílio, apesar de ter um valor maior que o antigo Bolsa Família, é
"míope em relação à pobreza".
"Ele
entrega mais recursos, mas não diferencia os perfis de pobreza, quem precisa
mais, não diferencia famílias maiores de famílias menores. R$ 400 para uma
família de 6 pessoas, o mesmo serve para uma família de uma pessoa, não tem
muito sentido. Fora as pessoas do Cadastro Único que não são
contempladas", afirma.
O g1 entrou em contato com o governo federal para
obter um posicionamento a respeito das críticas ao Auxílio
Brasil, mas recebeu, como resposta, apenas informações sobre os
critérios de elegibilidade e dados sobre a operacionalização do programa.
O que diz a secretaria
Luiz
Fernando Francisquini, coordenador de Gestão de Benefícios da SMADS, afirma que
o CadÚnico não é a única referência para medir a extrema pobreza no país, mas é
a "mais adequada".
“A
medição da extrema pobreza muda de um ano para o outro, de 2021 para 2022 nós
tivemos uma mudança na regra de medição, tomando como referência o Cadastro
Único. Ele não é a única dimensão de extrema pobreza, mas é a régua mais
adequada que temos no Brasil todo para identificar e quantificar as pessoas. A
mudança foi a faixa de renda, até outubro do ano passado era de R$ 89 per
capita mensal, em janeiro foi para R$ 105, tivemos uma elevação da régua, que
acaba incluindo mais famílias.”
Francisquini informou ainda que a secretaria começou a desenhar um estudo
que possa estimar a quantidade total de famílias nessa situação, mesmo fora do
cadastro.
"Precisamos
de uma atualização mais complexa dos dados de extrema pobreza, antes tínhamos
como referência o Censo do IBGE de 2010, mas são dados [que ficaram] antigos,
defasados. Ainda não temos uma referência robusta para dizer que aumentou tanto
em tais locais, até para medir o quanto está fora do CadÚnico e o quanto
deveria estar dentro e ainda não conseguiu acessar."
Ele
afirmou ainda que houve um aumento expressivo na demanda de atendimento por conta do empobrecimento maior da população. Segundo o
coordenador, atualmente o serviço social da capital possui uma equipe de 220
entrevistadores trabalhando no Cadastro Único, com um atendimento médio de 52
mil atendimentos por mês, mas ainda é necessário aumentar a equipe, o que está
previsto para ocorrer no segundo semestre deste ano.
"Nós
temos limitações orçamentárias, estruturais e de recursos, então temos que
racionar para ser o mais eficiente possível. Temos uma rede grande de
atendimento, mas ainda não é o ideal para atender todas as pessoas que
precisam, como as que estão mais afastadas dos postos de atendimento, que não
tem como se locomover até eles", ressalta.
Sobre
as pessoas que estão aptas a receber benefícios, mas, ainda assim, não recebem
o Auxílio Brasil, Francisquini diz que a estimativa da prefeitura é a de que sejam
80 mil famílias.
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